quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

DODECAEDRO 11º FRAGMENTO DA 13ª VOZ


Também conheço esse jogo। Agora pões a trunfa marroquina de espelhinhos, miçangas, bordados e cordões. Como uma coroa, sobre a cabeça. Acendes incenso, velas, jogas sal marinho nos quatro cantos, a água sobre toalha branca. Te benzes. E reviras os olhinhos, dispondo Fatídicos Arcanos. Traças sinais cabalísticos no ar e dizes coisas, Sacerdotisa de Nada, lançando profecias como quem lança milho às galinhas. A cabeça sempre um pouco baixa, para disfarçar a arrogância de ter sido A Grande Escolhida. Porca, porca, porca. Cumpres com humildade tua Amarga Sina De Ser Assim Abnegadamente Superior. E te melas toda no visgo das estrelas, te encharcas de visões equivocadas. Depois procuras o ponto de fogo entre as coxas, e só então suspiras, aliviada de tanta santidade. Ainda continuas? Pára, te ordeno. Não tens esse direito. Há mais. Onde? Tenho todos os direitos, só não suporto nenhum. Como discipliná-los, agora? Pensei que se conseguisse estaria livre. Pensei que se denunciasse a perdição deles me livraria da minha. Agora também me perdi. Destinos, anúncios luminosos. Faz um esforço, vamos. Apunhala, grita, arremata. Xangô te guia, machado em riste.
XI. VIRGINIADesde o início soube. Na verdade desde ontem, desde antes. Mas me limitei a observá-los, enquanto me aplicava nos cálculos para que não se emaranhassem os destinos nem se equivocassem os ângulos entre os planetas, as cúspides, os luminares. Embora nem sempre me ouvissem, falava assim mesmo. Dizia de Netuno embaçado, tornando ainda mais sangrenta a fúria de Marte, do movimento maléfico de Mercúrio, unido à Lua para obscurecer a luz do Sol, do brilho mais forte de Vênus em sua Casa, trazendo à tona as funduras de Saturno. Sobre todos, pairava Urano, a estimular o presságio da estranha abundância provocada por Júpiter, enquanto mais longe, por trás da consciência, como o jorro de lava dos vulcões, Plutão faria explodir o pus de todas as feridas. Dependeria de nosso exercício de alquimia saber transmutar o gosto nojento desse visgo amarelo em outro sabor mais limpo.Para isso estávamos ali, em teste. Sem passado nem futuro, suspensos. Mas a mim não importava o que se fora. Queria o passo à frente. Além ainda de inesperadas sinastrias, bizarras quadraturas das quais vinha tentando inutilmente avisá-los tanto tempo antes. Respeitavam a isso que chamam de minha “loucura’ mas solicitavam-me às vezes, pobremente, quando seus amores se complicavam, quando seus bens se perdiam, ainda que cinco minutos depois já não lembrassem minhas palavras. Que talvez não sejam definitivas, mas buscam sempre por essa região que entre a larva e a borboleta acontece num segundo no interior da crisálida para anunciar um próximo e possível vôo numa vida que não durará mais que um dia, de tão perfeita se armou. Porque não quero voltar outra vez a este plano de movediços terrenos enganosos. Sei bem de mim que, quando o sol encontrar novamente meu sol, talvez no próximo verão, também estarei partindo. Completa.Não lhes disse isso. Não era preciso. Não porque mais uma vez não entenderiam, mas sim porque depois de desfeita a desordem instaurada por Júlio, até que se inaugurasse nova ordem, menos precária que esta, alguém precisaria ir em frente. Me limitei a chamar Arthur, apanhar seu martelo, entregar minha luneta a Raul e arrancar as tábuas pregadas sobre as janelas da cozinha. Com a ajuda de Isis e Linda, escancará-las para que entrasse o ar noturno e a luz da lua cheia. Chamei também Marcelo à porta de seu quarto, que me abraçou com ardor, umas ardências das quais talvez precisarei até minha partida no próximo verão. Por isso tomei-o pela mão, trouxe-o comigo, me agradam suas sobrancelhas espessas, unidas graves sobre o nariz, seu olho de quem não teme matar e sempre planta. Estendeu-me um tomate maduro mordido, que mordi também, passando-o depois aos outros. Ë o primeiro, ele disse. Um por um, nós o provamos, parados à frente do quarto de Anaís. Sem querer, antes de bater, pensei obscuramente qualquer coisa assim:porque me antecede, ela sabe mais. Repito, ainda não é claro: porque ela me antecede, talvez saiba mais; se me amparar no passado verei mais claro o futuro. Bati três vezes.Entre a confusão de panos roxos, cristais, fumaça de incenso, quadros, sininhos, tecidos orientais pendurados do teto sobre a cama, livros, frascos, papéis escritos, Anaís sorria muito calma. Estendeu para mim as duas mãos em concha, cheias de comprimidos brancos, depois jogou-os ao chão. Júlio quis começar a dizer alguma coisa longa demais, e um tanto confusa, mas com um sinal ela fez entender que não era preciso. Depois apanhou as folhas de papel sobre a cama, sentou-se na janela aberta — esteve aberta o tempo todo, disse, ordenando as folhas — e perguntou se queríamos entrar para ouvir. Marcelo tentou abraçá-la. Ela afastou-o com um gesto delicado, querendo dizer que não, que agora não, que desse jeito não, que assim não, que não mais, quem sabe nunca. Servindo-se de um desses licores açucarados que costuma fazer, tão roxo que acho que era o de violetas, Anaís começou a ler.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

1º FRAGMENTO DA 13ª VOZ

Possível coreografia verbal para In Concert, de Keith Jarrett)

À memória de
Ana Cristina Cesar (Ana C.)
Para :
José Maria Carvalho

quando soltaram os cachorros loucos eu estava fazendo chá
de ervas do campo
e de repente o espanto
tremendo a chaleira
e bombeando medo
larguei as ervas e danado
precipitei-me à janela
de onde vi
enormes matilhas
com olhos cheios de negra espuma
a espuma invadia a rua
e abraçava postes, que caíam
cheios de óleo e náusea
engolia as pessoas
que alucinadas
enchiam o ar de berros
depois os cachorros foram embora
eu voltei ao meu chá
e lá fora a solidão
e uma flor quase despercebida
Henrique do Valle: Uma flor num buraco de calçada


PRIMEIRO FRAGMENTO DA DÉCIMA TERCEIRA VOZ

O tom, o problema é o tom. A tua mão está débil. Parece que não ousas. Espera um pouco, certa paciência. Quem sabe se eu explicasse como me veio, ajudaria? Mas ajudaria a quem, a quê? Não me pergunta ainda, só depois talvez quase saberei. É que o tom, eu te falava do tom. Sei, mas lá o tom, maldição, era exatamente esse. Mas assim... diluído? Assim contido? Espera: havia o rio, depois o mato. Foi entre o rio e o mato que me veio. Da casa chegavam uns acordes obsessivos de piano. E da memória, juntos, me brotaram uns versos falando nos cães. Não éramos doze, aquelas pessoas não me interessavam. Eu não as amaria, elas nunca me amariam, a não ser estonteadamente, por levezas, distrações. Eram outras. Era carnaval, pleno carnaval. Eu precisava voltar, elas queriam nascer, eu não as conhecia. Sabia apenas que estavam cercadas, que eram doze, que havia um rio, um mato, um piano tocando sem parar dentro da casa branca. No início da noite, nofim do verão.

1.RAUL
Alecrim, artemísia, absinto, boldo, manjericão, Verbena, camomila: eu estava na cozinha fazendo chá de ervas do campo quando soltaram os cachorros loucos. Gostava de misturá-las assim, as ervas, um pouco ao acaso, deixando a água esquentar enquanto as macerava devagar no pote de cerâmica. Tinha começado a anoitecer, mas ninguém lembrara ainda de acender as luzes. Talvez porque ficasse tudo mais calmo, mais bonito, quase perfeito: aquela meia penumbra avermelhada, o som do piano vindo da sala, as vozes caladas, as ervas verdes sobre a madeira da mesa. Agora, horas depois, minhas mãos continuam a guardar o cheiro fresco do capim-cidró que Marília colheu pela manhã, tomando cuidado para que a lâmina afiada das folhas não lhe cortasse os dedos. Se ficar bem atento, conseguirei localizar sob as unhas remotos vestígios do perfume da hortelã, do funcho, misturados ao cheiro ardido da arruda no galhinho colocado atrás da orelha para afugentar maus espíritos. Rindo de exorcismos, galhos, pedras, velas, incensos: os maus espíritos estão soltos, imunes aos axés, e não consigo ficar atento a mais nada além dos passos e dos uivos dos cães rondando a casa. A todo instante lembro de quando ainda estava tudo em aparente paz: as ervas sobre a mesa, a chaleira de ferro no fogo, o bule esmaltado de branco com as doze xícaras de cores diferentes dispostas em volta. Eu acompanhava com a cabeça a música vinda da sala, ao mesmo tempo em que esmagava as ervas para jogá-las dentro do bule. Esperando a água chiar, determinava com cuidado, e para sempre, a cor da xícara de cada um de nós, colocando-as em círculo ao redor do bule. Escolhi a vermelha para Arthur, que dá ordens, prega pregos, corta fios e sem parar faz coisas pela casa. Separei a azul-celeste para Isis, azul no tom exato de sua voz aguda quando canta, cristal retinindo na luz. Determinei que a verde mais clara pertenceria a Júlio, que se enreda em palavras, movimentos, e me parece — pelo menos agora, em plena noite — que o movimento tem exatamente essa cor, sobretudo às três horas das tardes de sol quente. Hesitei um pouco até encontrar minha própria cor, mas acabei escolhendo o branco, não só porque assim me visto sempre, mas também porque é meu oficio fazer coisas brancas, preparar os chás, assar os pães, lavar a louça. Para Ricardo, cujos cabelos claros às vezes brilham, ouro, com uma inspiração separei certeiro a amarela. Não tive dúvidas ao destinar a Martha, que tira a poeira da casa e lava o chão, a xícara verde-escuro. Para Linda, por sua dança de meneios harmoniosos, mansas curvaturas, separei a cor-de-rosa. Quando pensei nas sobrancelhas cerradas de Marcelo, imediatamente tomei a cor de vinho tinto, paixões, intensidades. Pedro, o que nos faz rir quando não está lendo ou caminhando sozinho pelo mato com seus Oxóssis, ficará com a laranja. Por gostar de terra, por nunca usar cores, Manilha ganhou a marrom. Restavam duas: a azul-marinho, cor do céu noturno, seria de Virgínia, para ajudá-la a decifrar as estrelas quando se embaçarem nas quadraturas. A roxa pertenceria a Anaís. São dessa cor os sonhos e premonições que costuma ter, os licores que prepara, o esmalte de suas unhas, os panos que a cercam. Assim: Como um pequeno zodíaco, doze xícaras em volta do bule. Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu. Abracadabras, shazams. Talvez não fossem necessárias, porque eu estava carregado de amor por nós todos.
Falo banalidades, sei, mas amor é magia, condão, pedra de toque — embora o pressentimento da teia escura se armando sobre nossas cabeças. Seria quem sabe o vermelho vivo do poente, tudo parado, nenhum vento na copa das árvores, a noite chegando do outro lado do mundo, o verão no fim. Sem que eu quisesse, meu pensamento voltava-se insistente para a xícara cor de vinho tinto. As notas do piano enleavam meu corpo em fios sonolentos. Eu deveria rir ou bocejar, suspenso à beira do sono, quando Ísis gritou ao longe, a chaleira ferveu e Marcelo entrou. Ele colocou a mão no meu ombro, apertou forte e disse que tinham soltado os cachorros loucos.

O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO



(Velha história colorida)Para Zé e Lygia Sávio Teixeira e para Lucrécia (Luiz ou CesarEsposito)
Estavam todos mais ou menos em paz quando o rapaz de blusa vermelha entrou agitado e disse que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros três interromperam o que estavam fazendo e ficaram olhando para ele sem dizer nada. Talvez não tivessem entendido direito, ou não quisessem entender. Ou não estivessem dispostos a interromper a leitura, sair da janela nem parar de comer a perna de galinha para prestar atenção em qualquer outra coisa, principalmente se essa coisa fosse Urano entrando em Escorpião,Júpiter saindo deAquário ou a Lua fora de curso.Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia- noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia. Uma vez renunciado ao sábado, os três ali ouvindo um velho Pink Floyd baixinho para que, como da outra vez, os vizinhos não reclamassem e viessem a polícia e o síndico ameaçando aos berros acabar com aquele antro (eles não gostavam da expressão, mas era assim mesmo que os vizinhos, o síndico e a polícia gritavam, jogando livros de segunda mão e almofadas indianas para todos os lados, como se esperassem encontrar alguma coisa proibida) — renunciando pois ao sábado, e tacitamente estabelecida a paz com o baixo volume do som e a quase nenhuma curiosidade em relação uns aos outros, já que se conheciam há muito tempo, eles não queriam ser sacudidos no seu sossego sábia e modestamente conquistado, desde que a noite anterior revelara carteiras e bolsos vazios. Então olharam vagamente para o rapaz de camisa vermelha parado no meio da sala. E não disseram nada.Aquele que tinha saído da janela fez assim como se estivesse prestando muita atenção na música, e falou que gostava demais daquele trechinho com órgão e violinos, que parecia uma cavalgada medieval. O rapaz de camisa vermelha percebeu que ele estava tentando mudar de assunto e perguntou se por acaso ele já tinha visto alguma vez na vida alguma cavalgada medieval. Ele disse que não, mas que com o órgão e todos aqueles violinos ao fundo ficava imaginando um guerreiro de armadura montado num cavalo branco, correndo contra o vento, assim tipo Távola Redonda, a silhueta de um castelo no alto da colina ao fundo — e o guerreiro era medieval, acentuou, disso tinha certeza. Ia continuar descrevendo a cena, pensou em acrescentar pinheiros, um crepúsculo, talvez um quarto crescente mourisco, quem sabe um lago até, quando a moça com o livro nas mãos tornou a baixar os óculos que erguera para a testa no momento em que o rapaz de camisa vermelha entrou, e leu um trecho assim:Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura. Necessariamente porque o dualismo existencial torna sua situação impossível, um dilema torturante. Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura — loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura.Ernest Becker, A negação a morte.Quando ela parou de ler e olhou radiante para os outros, o que tinha saído da janela voltara para a janela, o rapaz de camisa vermelha continuava parado e meio ofegante no meio da sala enquanto o outro olhava para o osso descarnado da perna de galinha. Disse então que não gostava muito de perna, preferia pescoço, e isso era engraçado porque passara por três fases distintas: na infância, só gostava de perna, na casa dele aconteciam brigas medonhas porque eram quatro irmãos e todos gostavam de perna, menos a Valéria, que tinha nojo de galinha; depois, na adolescência, preferia o peito, passara uns cinco ou seis anos comendo só peito e agora adorava pescoço. Os outros pareceram um tanto escandalizados, e ele explicou que o pescoço tinha delícias ocultas, assim mesmo, bem devagar, de-lí-ci-as-o-cul-tas, e nesse momento o disco acabou e as palavras ficaram ressoando meio libidinosas no ar enquanto ele olhava para o osso seco.O rapaz de camisa vermelha aproveitou o silêncio para gritar bem alto que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros pareceram perturbados, menos com a informação e mais com o barulho, e pediram psiu, para ele falar baixo, se não lembrava do que tinha acontecido a última vez. Ele disse que a última vez não interessava, que agora Urano estava entrando em Escorpião, ho-je, falou lentamente, olhos brilhando. Ele estava lá há uns cinco anos, acrescentou, e os outros perguntaram ao mesmo tempo e1e-quem-estava-onde?Urano o rapaz de camisa vermelha explicou, na minha Casa oito, a da Morte, vocês não sabem que eu podia morrer? e pareceria aliviado, não fosse toda aquela agitação. Os outros entreolharam-se e a moça com o livro nas mãos começou a contar uma história muito comprida e meio confusa sobre um garoto esquizofrênico que tinha começado bem assim, ela disse a curtir coisas como alquimia, astrologia, quiromancia, numerologia, que tinha lido não sabia onde (ela lia muito, e quando contava uma história nunca sabia ao certo onde a teria lido, às vezes não sabia sequer se a tinha vivido e não lido). Acabou no Pinel, contou, é assim que começam muitos processos esquizóides. Olhou bem para ele ao dizer processos esquizóides, os outros dois pareceram muito impressionados e tudo, não se sabia bem se porque respeitavam a moça e a consideravam superculta ou apenas porque queriam atemorizar o rapaz de camisa vermelha. De qualquer forma, ficou um silêncio cheio de becos até que um dos outros se moveu da janela para virar o disco. E quando as bolhas de som começaram a estourar no meio da sala todos pareceram mais aliviados, quase contentes outra vez.Foi então que o rapaz de camisa vermelha tirou da bolsa um livro que parecia encadernado por ele mesmo e perguntou se eles entendiam francês. Um dos rapazes jogou o osso de galinha no cinzeiro, como se quisesse dizer violentamente que não, olhando para o que estava na janela, e que já não estava mais na janela, mas sobre o tapete, remexendo nos discos. Parou de repente e olhou para a moça, que hesitou um pouco antes de dizer que entendia mais ou menos, e todos ficaram meio decepcionados. O rapaz de camisa vermelha falou baixinho que não tinha importância, e começou a ler um negócio assim:Laposition de cet astre en secteur situe le lieu ou l’être dégage au maximum son indiuidualitéaans une voie de supersonnalisation, à lafaveur d’un développement d’énergie ou d’une croissance exagerée qui est moins une abondance de force de vie qu’une tension particulière d’enérgie. Ici, l’être tendà affirmer une volontélucide d’independence quipeutie conduire à une expression supérieure et originaledesapersonalité. Dans la dissonance, son exigence conduit à l’insensibilité, à la dureté, à l’excesszf à l’extremisme, au jusqu’au’boutisme, à l’aventure, aux bouleversements.André Barbault, AstrologieParou de ler e olhou para os outros três devagar, um por um, mas só a moça sorriu, dizendo que não sabia o que era bouleversements. Um dos rapazes lembrou que boulevard era rua, e que portanto devia ser qualquer coisa que tinha a ver com rua, com andar muito na rua. Ficaram dando palpites, um deles começou a procurar um dicionário, o rapaz de blusa vermelha olhava de um para outro sem dizer nada. Depois que todos os livros foram remexidos e o dicionário não apareceu e o outro lado do disco também terminou, ele repetiu separando bem as sílabas e com uma pronúncia que os outros, sem dizer nada, acharam ótima:L’être tendà affirmer une volonté lucide d’independence qui peut le conduireà une expression supérieure et originale de sapersonalité.Então perguntou se os outros entendiam, eles disseram que sim, era parecidinho com português, lucide, por exemplo, e originale, era superfácil. Mas não pareciam entender. Aí os olhos dele ficaram muito brilhantes outra vez, parecia que ia começar a chorar quando de repente, sem que ninguém esperasse, deu um salto em direção à janela gritando que ia se jogar, que ninguém o compreendia, que nada valia mais a pena, que estava de saco cheio e não apostava um puto na merda de futuro.O rapaz de camisa vermelha chegou a colocar uma das pernas sobre o peitoril, abrindo os braços, mas os outros dois o agarraram a tempo e o levaram para o quarto, perguntando muito suavemente o que era aquilo, repetindo que ele estava demais nervoso, e que estava tudo bem, tudo bem. A moça de óculos ficou segurando a mão dele e passando os dedos no seu cabelo enquanto ele chorava, um dos rapazes disse que ia até a cozinha fazer um chá de artemísia ou camomila, a moça falou que cidró é que era bom pra essas coisas, o outro falou que ia colocar aquele disco de música indiana que ele gostava tanto, embora todo mundo achasse chatíssimo, só que precisou botar bem alto para que pudessem ouvir do quarto. O chá veio logo, quente e bom, apareceu um baseado que eles ficaram fumando juntos, um de cada vez, e tudo foi ficando muito harmonioso e calmo até que alguém começou a bater na porta tão forte que pareciam pontapés, não batidas.Era o síndico, pedindo aos berros para baixar o som e falando aquelas coisas desagradáveis de sempre. A moça de óculos disse que sentia muito, mas infelizmente naquela noite não podia baixar o volume do som, não era uma noite como as outras, era muito especial, sentia muito. Tirou os óculos e perguntou se o síndico não sabia que Urano estava entrando em Escorpião.Lá no quarto, o rapaz de blusa vermelha ouviu e deu um sorriso largo antes de adormecer com os outros segurando nas suas mãos. Então sonhou que deslizava suavemente, como se usasse patins, sobre uma superfície dourada e luminosa. Não sabia ao certo se um dos anéis de Saturno ou uma das luas de Júpiter. Talvez Titã
CAIO

NOÇÕES DE IRENE


Levou algum tempo para abrir a porta, a campainha soando sem resposta até que ele terminasse de ajeitar cuidadosamente as duas poltronas, uma em frente À outra. Depois entreabriu a pequena janelinha e simulou uma espécie de espanto:– Ah, é você — e abriu a porta para que o outro entrasse. – Você foi pontual — acrescentou, apontando para uma das poltronas. – Sente-se, por favor. Estava com medo que você não viesse.– Medo?– É, não exatamente medo. Você compreende, praticamente não me conhecia. Deve ter ficado surpreso com o convite.O outro sacudiu ligeiramente a cabeça. Parecia mesmo espantado, as mãos um pouco tensas sobre os joelhos dos jeans desbotados. Ele encaminhou-se para a mesinha e mostrou a garrafa de uísque.– Muito ou pouco gelo?– Puro, por favor.Espantou-se também, um pouco. Mas imediatamente conteve-se: era preciso que tudo fosse feito com muito cuidado, e que todas as palavras e movimentos se encaminhassem para um único fim. Enquanto enchia o copo, examinou-o disfarçadamente. Tão jovem, pensou com uma sombra que chamaria amargura, não estivesse tão empenhado em delicadezas. Voltou com os dois copos e, sentando, não soube por onde começar. Hesitava entre falar diretamente ou esperar que um clima de cordialidade — certa cordialidade, pelo menos, concedeu — se estabelecesse enquanto os copos eram esvaziados. Então percebeu que o outro olhava para os discos.– Gosta de música?– Muito.Claro, claro — pensou. — Todos eles gostam de música. Fez um movimento como se fosse levantar.– Quer ouvir alguma coisa? — Sorriu. – Curtir um som... não é assim que vocês dizem?O outro também sorriu:– Sim.– Bem, acho que não tenho exatamente aquilo que vocês gostam de ouvir. Irene sempre se queixa disso — estremeceu. Mas não havia nenhuma premeditação. O nome dela saíra naturalmente, assim como se não tivesse importância. Caminhou até a vitrola e perguntou: – Rock?– Bach.Escolheu rapidamente e voltou a sentar. Surpreso. Porque, afinal, não era como esperava. Talvez tivesse sido demasiado apressado em julgar, catalogar gostos, rotular expressões, como se nenhum deles fosse capaz de alguma individualidade. Afundou na poltrona. Os olhos muito claros do outro. Ou, quem sabe, estava apenas representando, justamente para confundi-lo.– Não queria que fosse como um jogo.– Como?– O quê?– Desculpe, não entendi direito o que você disse.Cruzou as pernas, contrafeito:– Falei sem pensar, desculpe. Ou melhor, pensei em voz alta. Disse que não queria que fosse como um jogo. — Ouviu a própria voz, um pouco rouca. Estava se comportando como um idiota. Mas subitamente resolveu dizer: – Bem, suponho que sabe por que pedi que viesse aqui.– Sei. Suponho que sei.Já havia começado. Não poderia mais voltar atrás:ele olhou para cima da mesa e viu o porta-retratos voltado para baixo. Estendeu o prato com biscoitos. O outro serviu-se devagar.– Estes biscoitos têm gosto de flor, não é?O outro tornou a sorrir, os dentes aparecendo súbitos entre os fios de barba manchados de sol e fumo, os cabelos enormes. Ele levou o copo até a boca e ficou sentindo as pedras de gelo baterem contra os lábios. Arrancou um fio invisível da perna da calça.– Quero dizer, se você sabe, ou se acha que sabe por que o convidei, bem, creio que não há necessidade de ficarmos... Bem, de ficarmos falando sobre outras coisas. Afinal, somos homens civilizados, não é?O outro concordou sem falar, contraindo imperceptivelmente as sobrancelhas. Ele julgou perceber ironia no movimento, e por um instante odiou: todo concentrado em odiar profundamente. Falou rápido:– Sou só um pouco mais velho que vocês. Uns dez anos. — Lembrou da outra vez que o vira, dizendo convicto: todo homem com mais de trinta anos é um canalha. Voltou a odiar um ódio compacto e breve: – Talvez daqui a vinte anos isso seja uma diferença insignificante. Mas por enquanto é terrível, quase um abismo. — Levantou-se brusco, não suportando o olhar muito claro do outro e suas mãos magras sobre os jeans desbotados. Afastou as cortinas e ficou olhando para fora: — O que quero dizer é que...Deteve-se. No lado oposto da rua a pequena loja de flores fechava suas portas. Era quase noite. Sem sentir, fez uma longa pausa, praticamente esquecido do outro. Depois completou:– Não me surpreende que ela vá embora.Olhou-o. E de repente a música começou a ter importância: as notas subiam e baixavam, davam voltas concêntricas sobre um ponto desconhecido, subitamente se espatifavam para voltarem a recompor-se, cheias de pequenos movimentos internos, mas sem perderem a continuidade, escorrendo, fluidas. O outro, na esquina, os dedos formando um V, os dentes entre os fios manchados de barba, os cabelos crespos, enormes: – Grande lance, bicho. — Sentou-se com um suspiro:– Quero dizer que não pretendo colocar a mínima dificuldade. Entendo perfeitamente tudo. E depois, mesmo que não entendesse, não adiantaria nada. Ela sempre fez o que quis. Mas não com... com agressividade, entende? Quero dizer, ela está sempre tão dentro dela mesma que qualquer coisa que faça não é nem certa nem errada, é simplesmente o que ela podia fazer. — Parou por um momento, talvez estivesse sendo subjetivo demais, quase literário. Não queria parecer ridículo, nem demasiado velho. Mesmo porque não sou velho. Nem ridículo. Tornou a levantar-se.– Quer mais uísque?O outro disse que não.Encheu um copo e trouxe a garrafa para perto da poltrona. De repente perguntou, quase alegre:– Sabia que Irene é um nome de origem grega?O outro perguntou: – O quê?– Quer dizer Mensageira da Paz — continuou, sem dar atenção. – Gozado, não é? Uma vez eu disse isso a ela, ela riu, disse que era besteira. Mas outro dia eu fiquei pensando e achei que tudo foi realmente muito calmo. Mesmo agora, não está sendo difícil. — Ergueu o copo. – Sabe, nunca houve assim... grandes cenas, choros ou desesperos, tentativas de suicídio ou sequer ameaças. Nenhuma dessas coisas. Ela tem horror de tragédia. — Sentou-se, o copo na mão. E repetiu: – Ela tem horror de tragédia. Às vezes, na hora do jantar, a televisão ficava ligada e a gente via umas novelas. Sabe, eu chorava potes com aquelas coisas, separações lancinantes, amores impossíveis. Ela ria o tempo todo e dizia que eu era uma besta. Ou então aqueles concursos de empregada mais desvelada, eu precisava sair da sala para que ela não me chamasse de besta. — A voz dele ficou um pouco mais baixa, quase inaudível. – Mas uma vez eu voltei de repente e surpreendi ela com uma lágrima escorrendo pela face. Desculpou-se e disse que às vezes era mesmo meio cafona. E mais baixo ainda: – Faz tanto tempo.Estremeceu. Como se, de repente, percebesse que enveredava por um caminho perigoso. Sacudiu os ombros e reaprumou-se na poltrona. Riu alto e meio desafinado, enquanto tornava a encher o copo:– A gente está falando dela como se estivesse morta. Mas está tão viva, não é?Levantou-se para virar o disco. Depois voltou-se e perguntou:– Você leu Cleo e Daniel?Não prestou atenção na resposta. Apoiou a mão no encosto da cadeira:– A primeira vez que vi vocês juntos, foi o que lembrei. Cleo e Daniel. Tudo era parecido, até aquela quantidade incrível de bolinhas brancas que você tirava do vidro enquanto ela formava figuras sobre a toalha. Ficava assim tão... tão doce, depois. Ou então falava horas. Às vezes sentava no chão e ficava enrolando aqueles cigarros fininhos, que eu achava com um fedor horrível. Dizia que eu estava por fora, me chamava de careta e ficava horas fazendo uns desenhos malucos.Interrompeu-se para olhá-lo fixamente:– Você é pintor, não é? Lembro que ela falou que uma vez você tinha feito uma exposição na praça, e que a polícia chegou e rasgou todos os quadros, menos os dois que ela tinha comprado. — E sem mudar de tom: – Talvez eu seja mesmo um chato. — Dobrou-se sobre a poltrona: – Você acha que eu sou um chato?Olhou longamente para o outro, para as pernas cruzadas sobre a poltrona, como um iogue. Mas não ouviu a resposta.– Lembra daquela cena, quando ela está deitada e passa alguém na rua cantando? Lembra aquela cena?– De Cleo e Daniel?– Não, não. Um livro não tem cenas, tem trechos. — Olhou para o próprio dedo, parado no ar. – Às vezes eu fico meio didático, não dê importância. — Acrescentou:– Quem tem cenas é um filme.– Qual era o filme?– Filme?– É, quando ela estava deitada e passava alguém na rua, cantando.– Ah, você lembra, então? — Sorriu largo. – Sempre soube que você tinha visto aquele filme. Lembra da música?– O quê?– A música. A música que alguém passava cantando. Era assim: lo che non vivo piú di un‘ora senza te... Não lembro o resto. Faz tanto tempo. Acho que foi o primeiro filme que vimos juntos. Ela chorou o tempo inteiro.Deslizou para a poltrona, tornou a encher o copo e virou-o de uma só vez:– Talvez eu esteja falando demais: logo, isto não é um diálogo, é um monólogo. — Repetiu: – Às vezes eu fico meio didático. Mas fale alguma coisa, você não disse quase nada. Pode crer que nada me choca. Não que eu espere ouvir somente coisas chocantes de você, não é isso. Mas acho que vocês pensam que me chocam o tempo todo. Vocês não acham mesmo que sou muito velho e muito careta? Afinal, já tenho alguns anos de canalhice.O outro disse que absolutamente. Então ele disse que achava que aquela música já estava enchendo, mas o outro não disse nada, então ele permaneceu durante muito tempo na mesma posição, acompanhando com a cabeça o som do cravo. Só parou para encher mais uma vez o copo. Subitamente falou em voz muito baixa:– Sabe, não é verdade que eu entenda tudo.– Não?– Não, não é verdade. Não entendo, por exemplo, como é que ela pode trocar a segurança de ficar comigo pela insegurança de ficar com você. Vocês são todos tão... tão... — Interrompeu-se, procurando a palavra. – Tran-sitó-ri-os, é isso. Vocês são muito transitórios, entende? Tão instáveis, hoje aqui, amanhã ali. Eu sei, também já fui assim. Só que chega um ponto que a gente cansa, que não quer mais saber de aventuras ou de procuras, entende? Acho que é isso que vocês não são capazes de compreender, que a gente, um dia, possa não querer mais do que tem. É isso que ela não compreendia. Acho que é por isso que ela foi embora. Talvez as coisas comigo fossem muito chatas, muito arrumadas. Acordar todos os dias à mesma hora para encontrar a mesma cara. É engraçado. Ela dizia sempre que morreria qualquer dia, de susto, de bala ou vício. Acho que citava algum verso de um desses cantores que vocês tanto gostam, desses que morrem por excesso de drogas.Levantou-se, o passo precário. Deu algumas voltas sem direção, depois tornou a encarar o outro:– Sabe, acho que ela vai se destruir com você.Virou mais uma vez o disco. Sabia que estava saindo tudo errado. Não era aquilo o que planejara, detalhado, meticuloso, arrumando as duas poltronas, uma em frente à outra, a mesinha com uísque, o balde de gelo. Talvez até chorasse agora, admitiu. A sala inteira girava quando ele se encaminhou para a janela. Espiou pelas dobras da cortina. Havia anoitecido. A loja de flores estava fechada, as latas de lixo transbordavam cravos, palmas, crisântemos. Deixou-se cair sobre os joelhos e não fez o menor esforço para levantar-se, as costas apoiadas contra a superfície fria da parede. O outro levantou-se e perguntou se não achava que estava bebendo demais. Ele disse que não, que não achava. E perguntou mais uma vez se não era mesmo um chato. O outro fez que não com a cabeça. Que de maneira alguma. Então ele disse que precisavam ainda conversar muitas coisas, com muita calma, com muito tato, como homens civilizados.– Não é verdade que somos homens civilizados?O outro disse que sim, disse muitas vezes que sim — e subitamente apertou o ombro dele com aquelas mãos magras e nervosas, como se compreendesse. Vistos de perto, os olhos eram ainda maiores e mais claros, um brilho seco nas pupilas dilatadas. A barba crescida, manchada de sol e fumo. Depois saiu devagar, fechou a porta atrás de si. Então ele encostou a cabeça na parede e ficou ouvindo aquelas notas subindo e baixando, dando voltas concêntricas sobre um pequeno ponto desconhecido, mas sem perderem a continuidade. De certa forma, disse baixinho, de certa forma Irene era assim.
CAIO

7º FRAGMENTO DA 13ª VOZ


A pedra morna de sol sob as minhas costas। Os garis limpam os restos da feira। Encosto a cabeça no tronco da árvore. Fecho os olhos, ofuscado pelo excesso de luz Dificil conciliar a manhã de fora com a treva de dentro. Respirar é uma oração que nada pede, Obá humilde. Continua, já ultrapassaste o meio, não tens mais o que temer. Repara, agora é como o centro escuro da noite. O próximo movimento só pode ser em direção à luz. Ele brilhava, ele era claro, ele era frito de sol. Todos queriam não estar ali. Não se deve, não se pode querer estar em outro lugar além do que se está. Eles desejam coisas que não existem. Eles não conhecem a paixão, nem tu. A tudo isso eu chamo tontura, não prazer. Evita a vertigem. Resseca, desbasta, o limite é a nudez do osso. Além dele, se avançares, há somente poeira. Mas cuidado, exigem-se os dentes fortes que Nanã perdeu. Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real. Como te atreves a supor que carregas O Facho de Luz? Sei bem quanto brilha, mas te digo que serias incapaz de vencer as Iansãs do vento.

VII. RUIVO
Não sei se tive medo — dos cães, da noite, dos corpos — ou se apenas queria que me vissem. De alguma forma, pensava confuso que jogando luz sobre a cozinha outra vez nos olharíamos nos olhos. Parecia importante saber se a mão no meu cabelo pertencia a Pedro ou a Virgínia, se a boca contra a minha era de Júlio ou Martha e assim, pensei, também os outros. Para que soubéssemos, acho, da exata medida e intenção de cada toque em cada membro, foi que acendi a luz. Como um filme que de repente pára, todos me olharam imobilizados no que faziam. Eu era o centro móvel do que começaria a acontecer no próximo momento. Marília olhou como se procurasse censura nos meus olhos. Mas eu queria festa, não dor. Caminhei para o armário, apanhei três garrafas de vinho tinto, coloquei-as sobre a mesa. Pedro abriu-as, enquanto Martha dispunha os cálices. O disco parou. Em silêncio, eu à cabeceira da mesa, brindamos a qualquer coisa que ainda não viera. À nossa sobrevivência, quem sabe.Mas embora o vinho, a festa tinha acabado. E não nos olhávamos nos olhos, apesar da luz. Os cães já não uivavam. Não havia mais a dança de Linda nem a canção de Isis. O silêncio tornou-se tão denso que cada movimento precisava ser feito devagar, como se o ar pesasse à nossa volta, dificultando os gestos. Quis pensar então na minha vida antiga, mesmo uma nem muito remota, que fosse pelo menos até pouco antes do pôr-do-sol quando, ao voltar para casa, do caminho cercado de hibiscos que liga o portão de entrada à varanda, enxerguei Virgínia ajustando a luneta para observar Vênus. Não consegui lembrar mais nada. Eu não tinha passado. Acho que pensei que não tivesse talvez também futuro. Como no centro de um palco, na cabeceira da mesa, a luz batendo direto no meu rosto, o braço esquerdo caído ao longo do corpo, o direito segurando um cálice de vinho. Alonguei lentamente a coluna. Então olhei-os.Éramos nove eremitas. Na cabeceira oposta da mesa, Raul olhava como se me tivesse transferido em segredo, em silêncio, o cetro de algum poder que eu sequer adivinhava o valor. Eu preparei o chá, ele disse, você preparou o vinho: um outro e novo movimento se inicia agora. Desejei que alguém colocasse outro disco na sala, que os cães recomeçassem a uivar, que caísse de repente uma dessas tempestades violentas de verão. Nada acontecia. A tática solenidade disposta entre nós começou a pesar tanto que, como um professor ou um psicanalista, tive o impulso de olhar o relógio para dizer qualquer coisa como bem, por hoje é só. Eu não conseguia dizer nada. Desviei meus olhos dos de Raul para fixá-los num quadro pouco acima da cabeça dele: a Santa Ceia desbotada de onde Tiago Menor parecia olhar direto nos meus olhos. Outra vez me voltou à memória o caminho de hibiscos. Tirei do bolso o quadrado de papel vegetal. Ergui-o como uma hóstia, as duas mãos unidas, até que a luz batesse justamente sobre ele. Através do papel, os grãos miúdos brilhavam feito pequenos sóis.Uma corrente de energia percorreu os outros. Júlio apressou-se a trazer o espelho. Pedro tirou da cintura o punhal marroquino. Marília acendeu a vela. Depositei na mesa o copo de vinho. Com a mão direita, abri devagar o papel sobre a palma da mão esquerda. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, soprei fortemente o pó. Flutuou por instantes no ar, depois espalhou-se sobre os móveis, pelos cantos, pelas quinas. Dissipar a névoa, sim, talvez fosse esse o meu sentido. Mas se era realmente assim, não compreendia por que, como a noite então, uma grande tristeza, neblina, começou a descer sobre mim. Eu não tinha passado algum antes do caminho de hibiscos, os cães recomeçaram a uivar, eu só queria iluminá-los, a cozinha estava muito suja, não havia futuro. Minha vida me doía fundo sangrada sem saída. Tudo que eu precisava era o sol quente da manhã seguinte que não viria, aquecendo minha cabeça confusa. Cobri o rosto com as mãos e comecei a chorar
CAIO

10º FRAGMENTO DA 13ª VOZ

Bem sei que gostarias. Mas não te colocarão na cruz, querido. Quanta vaidade, quanto palavreado tolo, quanta culpa idiota. Tanta Piedosa Afetação Messiânica. Desde o começo, sempre foi mentira. E todos sabiam. Pelo menos, enfrenta. Como aquela, mentindo naturalidades com tamanha perfeição que até consegue dizer: sou simples. E diz a verdade quando mente. Não me venhas com Densas Complexidades Psicológicas. Artimanhas, embustezinhos corriqueiros. Portas falsas, coração. Tudo isso me nauseia como a décima dose de um licor de anis. Oxum boceja, uma pluma amarela cai de seu leque. A culpa não existe. A mentira não existe. Falas com arcanjos enquanto cagas. Depois lavas as mãos, lês amenidades pelos jornais. Tudo não passa de um emaranhado de vísceras. Levarás para o túmulo tanta delicadeza, tamanha pudicícia. Os vermes engordarão de tanto açúcar-cande. O que não impedirá o fedor deflutuar como uma aura às avessas sobre a tua cova. Depois, talvez, quem sabe, por que não o Túnel de Luz Ofuscante? Não decifras nada, esfinge de plástico. Até quando insistirás nessa valsa grotesca, nos cristais de palha?
X. JÚLIO
Que não sou apenas um, tentei dizer depois de olhar nos olhos de um por um de cada um dos outros. Éramos nove. Além de mim, Marília abraçada a Martha, ambas observando os cigarros que eu acendia sem parar, como se dissessem que precisávamos economizar, Pedro muito próximo de Ricardo, Isis com a mão ensangüentada, Linda dançando ainda, Virgínia de repente muito alta olhava para mim como se visse de longe, de cima, Raul caminhando de um lado para outro, a repetir que tinha provocado tudo. Olhei-os primeiro um a um, já disse, no fundo dos olhos de várias cores e formas. E repeti, para que entendessem, se possível perdoassem, porque senti medo de Anaís e Marcelo trancados nos quartos, de Arthur fechado no banheiro, alguma coisa que eu e não Raul deflagrara se tornava mais grave do que poderia ter sido. Eu precisava então revelar, repeti, que não era apenas um, que fora o eu de mim que eu mesmo tentava manter calado, imóvel, quem dissera aquilo, pois para torná-lo assim quieto, inofensivo, precisava me movimentar, incessantemente dizendo fazendo coisas sem muita importância para me atordoar, para estonteá-los. Sou dois, repeti, e foi esse um que vocês não conhecem direito, nem eu, quem disse que haviam soltado os cães. Depois que esse eu-ele disse foi que começou a acontecer tudo isso que me assusta agora, como um final sangrento onde só o amor de alguns que o caos fez vir à tona e a solidão ainda maior de outros, pelo contraste do encontro alheio, como eu-eu, eu-ele, como meus dois eus, parecem revelar qualquer coisa como um novo caminho para o qual talvez nem todos os meus eus nem os de vocês estarão preparados.Acendi outro cigarro. Linda parou de dançar, embora a música prosseguisse na sala. Isis guardou um bombom no ar, a caminho da boca aberta. Raul e Virgínia me olharam imóveis, cada um num canto. Ao mesmo tempo, Martha e Marília, Ricardo e Pedro, foram desfazendo lentos seus abraços para me olharem também. A dor e o desespero tinham ido embora das teclas do piano. Tentei ser mais claro: ele mentiu, eu disse — eu menti, se quiserem—, e mais lento, assim:ninguém soltou os cachorros loucos. Se alguém quiser saber por que, direi novamente: não fui eu quem mentiu, mas uma parte de mim, e se quiserem perguntar também a essa parte de mim que desconheço quase tanto quanto vocês, se eu conseguisse localizá-la para trazê-la com cuidado à tona, sem que ameace tomar o controle de tudo, talvez ela dissesse: porque o verão está no fim, porque na verdade não nos conhecemos, porque nada do que acontecia aqui, rituais, levezas mentirosas, até que minha mentira nos ameaçasse aconteceria realmente se minha mentira não fosse verdade e nada tivéssemos a defender além da verdade inteira de um próximo momento mais verdadeiro que aquele. Mesmo medonho. Baixei a cabeça quando sem pretender fui forçado a dizer assim, cínico talvez, mas absolutamente passível de perdão, embora não necessitasse dele, porque de alguma forma havia feito exatamente o que me fora destinado fazer, ainda que para isso um eu desconhecido precisasse tomar o comando de mim e disse então, olhando nos olhos de um por um dos outros oito: foi por Amor que menti.Afastando-se de Ricardo, Pedro aproximou-se devagar, me tocou sem ódio no ombro para dizer: és meu oposto, mas se por amor confundes e libertas o caos de tudo e de todos, por amor eu tento tocar mais fundo, procurando um vôo que não conseguiria jamais num amor menor. Eu não queria seu perdão. Eu talvez fosse embora no momento seguinte, porque não havia cães nem terror nem paixão nem encontros nem nada além da mentira que o outro eu de mim inventara.Eu nada disse a Pedro. Apenas observei Virgínia caminhar até a porta do banheiro para explicar tudo a Arthur, e pouco depois, o martelo nas mãos, voltar à cozinha, entregar sua luneta a Raul antes de começar o trabalho, então despregar lentamente as tábuas das janelas. As batidas do martelo misturavam-se aos sons do piano. Ajudada por Linda e Isis, escancarou de repente as duas janelas. Era possível ver a lua cheia subindo no céu, cor de laranja denso atrás dos montes, vento fresco como se viesse do mar, embora estivéssemos no centro de todas as terras, entrando pelas janelas abertas para fazer esvoaçar nossos cabelos, arrepiar os pêlos de nossos braços, esfriar nossas faces. Acho que sorri quando, acompanhada pelos outros, Virgínia enveredou pelo corredor, detendo-se à porta de Marcelo para tomá-lo pela mão, sem dizer nada. Pararam todos à frente do quarto de Anaís. Pensei que não me queriam com eles, mas Pedro me tomou pela mão e eu me deixei levar.

THE RAT WITHIN THE GRAIN

This would not have happened if I hadn't missed my plane.
I would've been there when they told you I'm the rat within the grain.
Then this big misunderstanding out, wouldn't be misunderstood.
I'm thinking' someone's trying to fuck with me, and set fire to my wood.
I wouldn't want you to want to be wanted by me.
I wouldn't want you to worry you'd be drowned within my sea.
I only wanted to be wonderful, and wonderful is true.
In truth, I only really wanted to be wanted by you.
It's a stupid situation now where everything goes wrong.
If you can't tell if I am lying: then you do not belong.
In my bed, go rest your head upon the bones of a bigger man.
And he will cover you with Rockwool and you can close up like a clam.
'Cause I wouldn't want you to want to be wanted by me.
I wouldn't want you to worry you'd be drowned within my sea.
I only wanted to be wonderful, and wonderful is true.
In truth, I only really wanted to be wanted by you.
So go play with your piano and write a mediocre song
About this shell of mediocrity: pretend there's nothing wrong.
I never thought you were a chicken shit: I never thought of you at all.
Until you asked me to be part of it And now you're showing me a wall.
I wouldn't want you to want to be wanted by me.
I wouldn't want you to worry you'd be drowned within my sea.
I only wanted to be wonderful and wonderful is true.
In truth, I only really wanted to be wanted by you.
In truth, I only really wanted to be wanted by you
Willyan




DAMIEN RICE

12º FRAGMENTO DA 13ª VOZ

Não consegui. Do grande esforço através dos doze meses, doze signos, doze faces, só guardo essa certeza. Que tonta travessia. Tudo bem, descansa. Faz parte não conseguir. Como Sísifo, se queres mitologias. Queres ainda? Por favor, estou farto. Brilhos baratos, as jóias eram todas falsas. Está certo, mas não quiseram te fazer mal. O mal não existe reverso do bem. Tanto faz, só peço que me deixem. Vou ficar encostado na árvore até amanhecer. Olhos abertos, feito uma vela acesa. Se ela insistir, direi que não tenho piedade alguma. Que não compreendo, não aceito nem perdôo mais a loucura. Se ele vier, pedirei que fique. Serei bom para ele. Mentira, não pedirei nem direi nada a ninguém. É indivisível, aprendi. Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos todos pequenos. Sei que foi inútil quando os vejo obstinados recomeçar e recomeçar sempre. Uma serpente que morde a própria cauda, um círculo infinito de enganos, Maya. Talvez não, perdeste a fé? Não te castiga assim, está tudo em paz. Nunca houve cães. É como uma cantiga de ninar nas cinzas do fim do mundo. Um barbitú rico, se preferires. Entorpece, melancólico, te leva para longe. Já se perdeu, não há futuro. Repousa, meu amigo. Deixa-me passar a mão nos teus cabelos. Está amanhecendo. Em voz baixa, eu canto para te enganar.
XII. ANAISSabia que em breve estariam aqui. Estou um pouco tonta, creio que misturei álcool demais neste licor. Mas com a janela aberta sempre posso colocar a cabeça para fora, em busca de ar. Meus pés doem, embora sejam o mais belo de meu corpo. Porque sei bem que, de mim, quando o sol novamente encontrar meu sol, talvez no próximo verão, quem sabe daqui a setenta verões, também estarei partindo: completa. Foi a última coisa que ouvi, parecia a voz de Virgínia. De certa forma, também a minha. Depois disso, mais nada. Foi então que soube que logo estariam aqui. Comecei a me preparar, acendendo o incenso de sândalo, arrumando sobre a cama as almofadas lilases, apagando a luz do canto, acendendo a da cabeceira, mais íntima, sob o lenço abissínio, para que me encontrem em paz e sintam-se perfeitamente à vontade nesta nuvem roxa suspensa que habito e que chamo às vezes, irônica, de “meu mundo’Mais tarde explicarei, mas preciso dizer agora que soube de tudo no momento em que acompanhei os passos de Marcelo até a cozinha, até vê-lo debruçado sobre Raul. Foi então que corri. Alguma coisa me doeu, mas não o que começava a acontecer, nem os pés. Eu pré-sentia tudo o que viria. Parada na porta, espiando os dois, as imagens se sobrepunham sem controle na minha cabeça. Precisei então correr para o quarto, fechar a porta, abrir completamente as folhas da janela. Podia ver ainda uns restos de roxo nascidos do vermelho mais forte do horizonte para transformar-se no azul profundo da noite. Sim, eu estaria quieta em minha nuvem numa tarde de fevereiro, talvez um pouco tonta — eu estive, corrigi, porque já tinha passado, embora não tivesse vindo — eu estaria absolutamente quieta, quem sabe ouvindo música, qualquer coisa sobre o difícil de sair às ruas onde sem parar correm automóveis e emoções se misturam enquanto pessoas mordem umas às outras, às dentadas, procurando matar a fome com pedaços, sem deixar nada em troca do membro decepado. Então invadirias subitossuave a minha porta e me falarias de coisas tão caras a mim, feitas de frágeis, falsos encantamentos, como aquele botão de rosa branca que te dei faz algum tempo, e depois se abriu espantosamente, feito uma estrela, assim durou, semanas à tua cabeceira, como se eu te iluminasse, falarias por muito tempo ainda, provando ávido meus licores, a mergulhar falsamente sábio nessas magias onde sabes que tento me equilibrar, lembrarias uns toques oblíquos de antes, certos olhares a anunciar esse momento, velhos agostos em que te afastei de mim porque te supunha menor, não me enganava, até mais tarde, tão naturalmente que nem eu nem tu saberíamos dizer de quem partiu o início do gesto, a mão de um tocaria redondaleve a pele do rosto do outro para que começasse a acontecer tudo aquilo de beijos e suores e salivas e gritos de prazer, misturados num sonho não sei se meu o teu/meu corpo que já não sabia até onde era meu ou teu, sentindo sempre, desde antes do início do gesto, do toque, que não haveria depois, até este duro engano de hoje, e na manhã seguinte tonta, saciada do esplendor, meio morta, consumada no que julgara impossível, atravessaria o dia meio cega para descobrir vagamente que, além das mentiras, terias deixado em mim a semente de uma história complicada, esta, que arrastei durante doze longos meses, até que todos brotem, até enfim te concluir primário, tosco, terrês, nunca capaz de compreender que além desta nítida dor cravada que por muitas vezes beirou a morte, porque te queria como se quer, vadia, humanamente, a solução de Deus no Outro, deixavas também um encontro que não aconteceu, que talvez nada esclareça, porque tudo é de vidro, porque brotou da confusão apaixonada que despertasse em mim, que te julguei esclarecendo a vida, peça final de um quebra-cabeça, peça inicial de outro, de um excesso de líquidos e desejos para sempre incompletos, mas que ficará, ainda que ninguém a entenda, esses ramos, esses castelos, como não ficaste, porque eras só mensagem de algo que ainda não sei, isso sei agora, o que não saberei, passageiro como o passo de um bailarino em seu curto vôo, porque minha fantasia ultrapassa tua dança e a miúda sede do teu corpo não passa de veículo mecânico, alheio, involuntário do divino ou demoníaco que suponha verbalizar.Quando voltar setembro, tudo estará acabado, pronto para refazer-se. Comecei a escrever sem sabero que dizia, e não parei. Não morri nem enlouqueci. O que invento me ultrapassa sempre. E tem asas.Agora também.Ouvi as batidas na minha porta. Eu contava os pequenos comprimidos sobre as folhas escritas, querendo morrer outra vez, quando ouvi as três batidas na porta. Antes de abrir já os tinha visto, os onze, lado a lado, me olhando. Eu estava cansada. Mas sorri para eles. Juntei os comprimidos brancos entre as mãos que estendi para Virgínia, joguei-os ao chão. Júlio começou a tentar explicar qualquer coisa que eu já sabia. Pego as folhas sobre a cama, convido-os para entrar. Mordo o último pedaço do tomate maduro que Marcelo me estende. Sento na janela aberta. Sopra um vento fresco do lado do rio. Sirvo para mim mesma uma dose de licor de violetas. Brindo a ninguém, a coisa alguma. A lua está cheia. Ordeno disciplinada as folhas. O verão acabou. E começo a ler para eles o que escrevi durante o tempo em que se batiam pela casa. Começa assim:Alecrim, artemísia, absinto, boldo, manjericão, verbena, camomila: eu estava na cozinha fazendo chá de ervas do campo quando soltaram os cachorros loucos.
( Caio Fernando )

O DESTINO DESFOLHOU


Em memória deTânia Beatriz Pacheco Pinto.
E para Fanny Abramovich, que me fez lembrar.“Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor: onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito: em que direção se vai?”
(Adélia Prado: O Coração Disparado)
VÊNUS.

HÁ seis anos, ele estava apaixonado por ela. Perdidamente. O problema - um dos problemas, porque havia outros, bem mais graves -, o problema inicial, pelo menos, é que era cedo demais. Quando se tem vinte ou trinta anos, seis anos de paixão pode ser muito (ou pouco, vai saber) tempo. Mas acontece que ele só tinha doze anos. Ela, um a mais. Estavam ambos naquela faixa intermediária em que ficou cedo demais para algumas coisas, e demasiado tarde para a maioria das outras.
Ela chamava-se Beatriz. Ele chamava-se - não vem ao caso. Mas não era Dante, ainda não. Anos mais tarde, tentaria lembrar-se de Como Tudo Começou. E não conseguia. Não conseguiria, claramente. Voltavam sempre cenas confusas na memória. Misturavam-se, sem cronologia, sem que ele conseguisse determinar o que teria vindo antes ou depois daquele momento em que, tão perdidamente, apaixonou-se por Beatriz.
Voltavam principalmente duas cenas. A primeira, num aniversário, não saberia dizer de quem. Dessas festas de verão, janelas da casa todas abertas, deixando entrar uma luz bem clara que depois empalideceria aos poucos, tingindo o céu de vermelho, porque entardecia. Ele lembrava de um copo de guaraná, da saia de veludo da mãe - sempre ficava enroscado na mãe, nas festas, espiando de longe os outros, os da idade dele. Lembrava do copo de guaraná, da saia de veludo (seria verde-musgo?) e do balão de gás que segurava. Então a mãe perguntou, de repente, qual a menina da festa que ele achava mais bonita. Sem precisar pensar, respondeu:
- Beatriz.
A mãe riu, jogou para trás os cabelos - uns cabelos dourados, que nem o guaraná e a luz de verão - e disse assim:
- Credo, aquela estrelete?
Anos mais tarde, não encontraria no dicionário o significado da palavra estrelete. Mas naquele momento, ali com o balão numa das mãos, o guaraná na outra, cotovelos fincados no veludo (seria azul-marinho?) da saia da mãe, pensou primeiro em estrela. Talvez por causa do movimento dos cabelos da mãe, quando tudo brilhou, ele pensou em estrela. Uma pequena estrela. Uma estrela magrinha, meio nervosa. Beatriz tinha um pescoço longo de bailarina que a fazia mais alta que as outras meninas, e um jeito lindo de brilhar quando movia as costas muito retas, olhando adulta em volta.
Estrelete estrelete estrelete estrelete - repetiu e repetiu até que a palavra perdesse o sentido e, reduzida a faíscas, saísse voando junto com o balão que ele soltou, escondido atrás do taquareiro. Bem na hora em que o sol sumia e uma primeira estrela apareceu. Estrela D’Alva, Vésper, Vênus, diziam. Diziam muitas coisas que ele ainda não entendia.

CENAS

A outra cena acontecia num dos festivais de fim de ano do Grupo Escolar, no Cine Cruzeiro do Sul.
Ele estava na platéia, porque não sabia cantar nem dançar nem declamar, nem nada que os outros pudessem sentar e aplaudir - como ele sentava e aplaudia agora. Então Beatriz entrava no palco com um vestido branco repolhudo, sentava numa cadeira e a professora-apresentadora colocava um acordeom nos braços dela. Embora alta demais para a idade, Beatriz quase desaparecia no palco do cinema, atrás daquele enorme acordeom. Dava só para ver o rosto pálido, sério, a franja lisa acima do instrumento, as pernas compridas abaixo, tão finas que os carpins de renda desabavam sobre os sapatos de verniz preto e presilha. As duas mãos de unhas roídas, nas teclas.
Então, acontecia. Na memória, anos depois, tinha a impressão de que havia um silêncio pouco antes dela começar. Um silêncio precedendo o brilho. Talvez não, só fantasias.
De repente, logo após esse silêncio incerto, os dedos de unhas roídas de Beatriz começavam a mover-se sobre as teclas. Do acordeom e da voz dela, uma voz fina de vidro, agulha, espinho, brotava aos poucos uma valsinha chamada O Destino Desfolhou. O-nosso-amor-traduzia-felicidade-e-afeição, ele lembraria, suprema-glória-que-um-dia-tive-ao-alcance-da-mão. O coração bateu mais forte. Como quando soltara o balão, de tardezinha, atrás do taquaral. E alguma coisa brilhou no ar entre vermelho e roxo do entardecer, no meio das paredes descascadas do Cine Cruzeiro do Sul. Era tudo: cenas.
Depois dessa, havia outras.
Cenas mais comuns, com ele sentado quase sempre atrás ou ao lado dela, na primeira, segunda, terceira, quarta e quinta séries primárias. Colava de Beatriz, em Aritmética. Ela colava dele, em Linguagem. Tiravam notas boas. Mas em Comportamento, todo mês ganhavam o mínimo, porque não paravam de conversar. Todas as manhãs, menos sábado e domingo.
Sábado não tinha Beatriz. Mas domingo, vezenquando, na missa das dez, novamente ela aparecia, ao lado da mãe. Dona Lucy não usava saias de veludo nem tinha cabelos dourados: era viúva, vestia preto, cabelos presos num coque, rosário na mão. Ao lado dela, o brilho de Beatriz desaparecia, ofuscado por uma dor que ela ou ele só seriam capazes de compreender mais tarde, se houvesse tempo. E não havia.

A SEPARAÇÃO

De repente - ou não de repente, mas tão aos pouquinhos, e tão igual todo dia que era como se fosse assim, num piscar de olhos, num virar de página - passou-se muito tempo. E quando começaram o ginásio houve: A Separação. Ele foi para o colégio Estadual, ela para o colégio das Freiras. Depois das férias grandes, pelas manhãs, num fim de verão, não havia mais Beatriz.
Aos domingos, sim, tinha Beatriz na matinê das quatro. Sem dona Lucy. Havia agora Betinha, Aureluce, Tanara e outras amigas barulhentas em volta, uma fila inteira delas no Cine Cruzeiro do Sul. Com blusinhas de banlon e risadinhas, pipocas e barulho de papel de bala amassado justo na hora em que Johnny Weissmuller ia cair nas mãos dos pigmeus canibais. Areias movediças, caçadores de cabeça, dardos fatais. Odiava todas as gurias: gasguitas gasguitas. Menos ela. Quando retardava ou apressava o passo para cruzá-la na saída, ruborizava um pouco, dizia ó-h! cumprimentando - e apressava o passo de novo, para afastar-se logo e levá-la por dentro, perdoando tudo.
Ela crescia. Crescia não como as outras, para os lados, para a frente e para trás. Beatriz crescia principalmente para cima. Pescoço cada vez mais longo, rabo-de-cavalo preto liso escorrido batendo nas costas, abaixo dos ombros. Ele, não. Ele não crescia para lado nenhum. Só para dentro, parecia. Tinha horror de uma coisa densa, meio suja, entupindo ele por dentro. Descoordenava os movimentos, descontrolava a voz. Umas espinhas, uns pêlos apareciam em lugares imprevistos. Sentia-se pesado, lerdo, desconfortável como se não coubesse dentro do próprio corpo, suspenso entre ter perdido um jeito antigo de comandá-lo e ainda não ter encontrado o jeito novo. Que devia haver um.
Nessa época, começaram os boatos. A filha da Lucy, diziam, mas mudavam logo de assunto quando ele se aproximava. Que horror, ainda conseguia ouvir, que tragédia. Primeiro o marido, agora a filha. Coitadinha, nem quinze anos. Aprendeu a maneira de ouvir sem ser visto. Na sombra, atrás da porta.
Até surpreender, um dia, a palavra nova: leucemia. No dicionário, encontrou. Mas não conseguiu entender direito. Glóbulos, era bonito, redondo. Parecia pétala, sânscrito, dádiva: gló-bu-los. Brancos, excesso. Mata? perguntou no colégio. Disseram que sim. Em pouco tempo.

A URGÊNCIA

Então baixou a pressa.
Não tinha mais um dia a perder, pois embora fosse muito cedo, começou a suspeitar que era também desesperadamente tarde demais. Procurou Betinha, bilhete pronto, escrito com Parker em folha de arquivo. Quero falar contigo amanhã sem falta, na praça, depois da aula.
- Tu sabes? - perguntou Betinha, olho no olho.
Ele disse que sim.
De tardezinha, veio a resposta: Beatriz concordava. Amanhã na praça, sem falta.
- Mas tu sabes mesmo? - Betinha perguntou novamente.
Outra vez, disse que sim. Perguntou se era verdade. Betinha sacudiu a cabeça, que era. Antes de ir embora, ainda falou:
- Olha bem para o pescoço dela. Tem uns caroços aqui, assim, inchados. Aquilo é a doença.
Ele olhou bem, quase meio-dia da manhã seguinte, sentados num banco do centro da praça. Enquanto pedia, trêmulo de amor:
- Beatriz, quero namorar contigo.
Ela apertou contra o peito um livro de História do Brasil:
- Tu é muito criança - disse.
Quase não conseguia olhar para ela. Olhava o chão de pastilhas coloridas no centro da praça. Formavam círculos, quadrados, estrelas grandes e pequenas. Menores ainda, estreletes.
- Mas se eu sou criança - foi dizendo devagar, convincente -, se eu sou criança tu também é, porque só tens doze anos.
- Treze - ela corrigiu. E ergueu o rosto para o sol no meio do céu. Os gânglios inchados quase desapareciam assim. Gân-gli-os, repetiu mentalmente, essa palavra que quase não conhecia.
Espantado, percebeu que Beatriz usava batom. Batom clarinho, mal se notava. Parecia tão divertida e distante que aquela coisa densa, meio suja, dentro dele começou a se contorcer feito quisesse sair para fora. Cobra armando o bote, vômito armado na garganta. Ainda tentava controlá-la, quando insistiu:
- Eu gosto de ti, Beatriz. Eu gosto muito de ti. Eu gosto tanto de ti.
- Pois eu não - ela abaixou os olhos, procurando os dele. Quando encontrou, falou quase sorrindo, como quem dá uma coisa doce, não como quem enfia uma faca afiada: - Gosto só como amigo.
- Como amigo, não me interessa - gemeu.
Devia ser março, porque o sol era tão quente que fazia gotas de suor escorrerem entre as espinhas da cara dele até o lábio superior, onde aquele pêlos escuros começavam a se adensar. Sua cara de macho em preparação devia estar nojenta como a de um bicho. Mais tarde, bem mais tarde, se lhe perguntassem, mas ninguém saberia, poderia explicar que não tinha tido culpa. Foi aquela coisa suja de dentro que subiu descontrolada garganta acima, para atravessar a língua e os dentes até arredondar-se de repente na pergunta cruel que jogou no ar morno de meio-dia (e Sol na X, era o destino):
- Beatriz, tu sabe que vai morrer?
Ela levantou. Nem pálida, nem lágrimas nos olhos. Remota, fatídica. Ele levantou também. Só então percebeu que, além do batom, ela usava sapatos de saltinho que a faziam quase dois palmos mais alta que ele. Por trás dela, podia ver a torre da igreja. Talvez uma ou duas palmeiras. A caixa d’água ao longe, muito alta. O sino começou a bater. Beatriz virou as costas e saiu caminhando, pescoço erguido, o livro de História apertado contra os seios tão empinados que, num último golpe, percebeu: além do batom e dos saltinhos, Beatriz também usava sutiã.
Beatriz era uma mulher. E ia morrer

A PARTIDA

Volta, quis dizer, parado no meio da praça.
Mas agora, tantos anos depois, não saberia se teve mesmo vontade de chamar ali, ao meio-dia de uma tarde de Peixes, ou se repetiria depois baixinho, à noite, sozinho na cama, no mesmo quarto com o irmão mais velho, nessa noite ou em todas as outras depois dessa, à medida que o verão fosse indo embora e as noites todas se tornassem mais e mais frias, junho julho, agosto adentro, enrolado em cobertores, vida afora repetindo volta, Beatriz, volta que eu cuido de ti e dou um jeito qualquer de tu ficares boa e então nós podemos ir embora para a África ou Oceania ou Eurásia ou qualquer outro lugar onde tu possas ficar completamente boa do meu lado e para sempre, volta que eu te cuido e não te deixo morrer nunca. Não disse nada. Pisando lenta, olhando o sol, Beatriz foi embora para sempre dos doze anos de vida dele.

AH, DINDI...

O tempo passou, depois disso, mais um pouco. Um, dois anos em que, além de para dentro, ele começou a crescer igual aos outros: em todas as direções. Aqueles pêlos finos engrossaram sobre o lábio superior, outros surgiram, escureceram curvas, reentrâncias. As espinhas desapareceram, a voz definiu-se. Aquela coisa densa de dentro transformou-se numa espécie de leite espesso que descobriu o jeito de puxar para fora, com movimentos da mão e estremecimentos do corpo. Na cama ao lado, Toninho repetia:
- Vai criar cabelo na palma da mão. Vai ficar tuberculoso desse jeito. Se quiser, um dia me fala, te levo na zona. Ou vai sozinho, chega na Morocha e diz que é meu irmão, ela já sabe.
Foram esses os anos em que Beatriz foi embora. Para a capital, para se tratar, diziam.
Isso depois de uma fase em que ela trocou aquele batom rosa clarinho por outro vermelho, muito forte, aqueles saltos baixos por outros altíssimos, e decotes fundos, costas de fora, saias curtas, pernas cruzadas no clube, risadas estridentes na rua, cigarros e rosas de ruge nas faces cada vez mais brancas. De mão em mão, Beatriz passou. Pelas mãos de Cacá, que na aula de Educação Física abaixava o calção para mostrar o pau, o maior do colégio, quem quisesse ver. Ou pegar, alguns pegavam. Pelas mãos de Mauro, que tinha cabelo no peito e encestava bola no basquete como ninguém. E Luizão e Pancho e Caramujo e Bira e tantos outros que nem lembrava direito o nome, a cara, divulgando pelas esquinas, pela sinuca, pela praça ou matinê: ela faz de tudo, só chegar e meter a mão, dá pra qualquer um - uma percanha.
Com ele, quase nada aconteceu, além de uma tentativa desastrada de namorar Betinha, depois que Beatriz se foi. Mas só perguntava por ela, até que um dia Betinha encheu, foi namorar Luizão, que tinha uma lambreta. Quase nada além daquele corpo crescendo em direções imprevistas, de um B gótico desenhado em segredo e carinho nas folhas finais dos cadernos, principalmente os de Geografia, quando tentava decorar as capitais - Suíça, capital Berna; Polônia, capital Varsóvia; Honduras, capital Te-gu-ci-gal-pa - e a cada nome estranho repetia e repetia, morto de saudade: para lá, então, para lá, Beatriz, quem sabe - vamos?
Aprendeu a dirigir o Simca Chambord branco forrado de vermelho do pai. Mas Passo da Guanxuma acabava logo: só restavam quatro estradas de terra vermelha poeirenta batida, perdidas até o horizonte. Precisou professor particular de Matemática. Ficou para segunda época em Latim, não conseguia passar da primeira declinação, terra, terrae, terram. Escreveu sonetos de pé quebrado, sem parar ouviu Silvinha Telles num compacto cantando ah-Dindi-se-soubesses-o-bemque-eu-te-quero-o-mundo-seria-Dindi-lindo-Dindi...
Até aquele dia.

MARTE

Era sempre verão quando alguma coisa acontecia. Talvez porque no verão as pessoas tiravam cadeiras para fora de casa e, pelas calçadas, olhando estrelas, falavam de tudo que não costumavam falar durante o dia. Ele tinha aprendido o jeito de se confundir com as sombras, sem que o notassem. Tinha-se tornado uma sombra à espreita do que nunca era dito claramente, à beira do momento em que não haveria mais nenhum segredo a descobrir e a vida, então, se tornasse crua e visível, por tê-la tocado ele mesmo, não por ouvir dizer.
Frase após frase, ficou ouvindo:
- E a filha da Lucy, tu já soube?
- Quem, a Beatriz?
- E a Lucy tinha outra filha, criatura?
Perguntei por perguntar. Que aconteceu?
- Pois diz que morreu, em Porto Alegre.
- Mas não me conta, criatura. Quando?
- Ontem, tresantontem. Não sei direito. Vão enterrar lá mesmo.
- Que barbaridade Tão novinha.
- Pois é. Mas uma perdida. Não tinha nem dezesseis anos.
- Um guria bonitinha. Meio espevitada, mas jeitosinha.
- Diz que morreu grávida.
- Pelo amor de Deus, não me conta.
- Que sabia que ia morrer. Aí deu um desgosto, emputeceu de repente.
- Mas quem era o pai?
- Deus é que sabe. Só aqui no Paço, retoçou com todos. O Cacá da Zulma, o Luizão da Lia, o Eira do Otaviano. Fora os de lá, que ninguém sabe.
- Que coisa de louco.
- Diz que a cabeça rachou toda antes de morrer.
- Como, rachou?
- Pois rachou, ué. Que nem porongo no sol. A tal da doença.
- Mas a pobre da Lucy. Primeiro o marido, depois a filha.
- Cada vivente com a sua sina.
- A pobre da Beatriz.
- Que Deus a tenha.
- Escuta, teu filho não tinha um rabicho por ela?
- Tinha? (Tanto tempo hoje, a garrafa de vinho quase vazia e a voz travada de Marjanne Faithfull cantando As Tears Goes By, tantas dores novas, e tão inesperadas, tivesse visto de lá, naquele tempo, com aqueles olhos que nunca mais teria.) Tinha tido mesmo - tão grosseiro, como se diz? - um rabicho por Beatriz? Não sabia responder direito.
Deve ter olhado para cima e visto a estrela vermelha (seria Marte?) que naquele verão costumava brilhar justamente sobre a casa da Morocha. Teve um impulso, coice no peito, suor na testa. Mas esperou que o assunto mudasse, virando página após página de O Cruzeiro, jogado no sofá-cama da sala. David Nasser, disco voador, Márcia e Maristela, candangos, Odete Lara, coisas assim. Só depois de ter remanchado horas pela casa - outra vez então aquela coisa grossa, aquela coisa porca, aquela coisa furiosa dando voltas dentro dele - resolveu emergir devagarinho das sombras para a luz do poste sobre as pessoas sentadas na calçada.
E visto assim, à luz do poste, dos cigarros, vaga-lumes e estrelas, camisa aberta ao peito, as duas mãos enfiadas fundo nos bolsos, parecia tão seguro e decidido que ninguém teria coragem de negar absolutamente nada quando pediu:
- Pai, me empresta o auto?

POEIRA

Deu a partida e enveredou pelos barrancos em direção à casa da Morocha. Alto do chão.
- El hermano de Tonico? - ela perguntou, oferecendo a cuja de mate novo, dente de ouro na frente. - Entonces, eres tu? Bién que él me tenha hablado, muy guapo.
Os anéis cintilaram quando ela abriu a porta para que ele penetrasse no interior enfumaçado. Já estavam lá, ou chegariam depois, não lembrava, o Caramujo, o Pancho, o Bira e talvez um ou outro daqueles bagaceiras todos que tinham tocado em Beatriz. Não falou com ninguém. Sentou sozinho numa mesa, pediu um maço de Hudson com ponta, uma cerveja. Antes que pedisse a segunda, uma loira meio velha, olhos verdes e falha num dente, pediu licença para sentar com ele. Usava saia justa de veludo de cor viva, de que nunca mais conseguiu lembrar a cor exata, embora tivesse certeza de que não era verde-musgo nem azul-marinho.
Na manhã seguinte, quando Toninho aos berros finalmente conseguiu acordá-lo, lembrava apenas de ter pedido para ouvir O Destino Desfolhou, depois de uma vomitada espetacular bem no meio da sala. Mais que tudo, das pernas escancaradas de uma loira meio velha numa cama de lençóis com cheiro estranho. O resto, névoa opaca, gosto de palha na boca.
Hoje - tantos anos depois, neurônios arrebentados de álcool, drogas, insônia, rejeições, e a memória trapaceia, mesmo com a atenção voltada inteira para o centro seco daquilo que era denso e foi-se dispersando aos poucos, como se perdem o tempo e as emoções, poeira varrida, por mais esforços que faça, plena madrugada, sede familiar, telefone - mudo - não consegue lembrar de quase mais nada além disto tudo que tentou ser dito sobre Beatriz ou ele mesmo ou aquilo que agora chama, com carinho e amargura, de: Aquele Tempo.
Tempo, faz tanto tempo, repetem - esquece. Continuam a dizer coisas que ele não entende.
( Caio Fernando )

AS FORMIGAS - Eduardo Galeano

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar desde planeta.
Um dia, junto a seus companheiros de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais, e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MORANGOS MOFADOS

Prelúdio
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo — e queria? Enumerava frases como é-assimqile-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas afinal que importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta.
Allegro Agitato
Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do médico, têniporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido d0 bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitara metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncor, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum.
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grande Centros Usbanos, cara bem barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa Vt disse que os médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade colstante com a carne humana, considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma boceta, praticar-sexo-oral, como diria depois, escovando meticuloso suas próteses perfeitas, naturalmente que se o senhor pudesse diminuir o cigarro sempre é bom, muito leite, fervido, é claro, para evitar os cloriformes, ar puro, um pouco de exercício, cooper, quem sabe, mais pensando no futuro do que em termos imediatos, claro. Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório era metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico, não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado — e este gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes no mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? dançar um tango argentino, ou seria cantar? cantarolou calado assim “quiero emborrachar mi corazón para olvidar um toco amor que más que amor fue una traición’ tinha versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? nem eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranqüilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranqüilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem.
Adagio sostenuto
Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que trocado em miúdos significavá algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de dormir, só que juntos — e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou, e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beaties, mas ainda na cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora, perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda—feira ninguém sabe o quê.
Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por? Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos & impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice, mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho, estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz que se. O telefone tocou uma vez mais, e como se diz nesses casos, mais uma e mais outra e outra mais, enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra acariciava o pau começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis.
O telefone parou, o telefone não fazia nenhum som especial ao parar, mas deveria arfar, gemer quando entrasse fundo, duro e quente, judeuzinho de merda, deve estar metido naquele kibutz no meio da areia plantando trigo, não, trigo acho que não, é muito seco, azeitonas quem sabe, milho talvez, a cabeça quente do pau vibrava na palma da mão, foi no que deu ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers, pervitin por pambenil, tesão se resolve é na cama, não emprestando livro nem apresentando droga, anote, aprenda, mas agora è troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas, latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo.
Andante ostinato
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack Nicholson antes de ser morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no fundo do poço tão profundo que precisaria de uma escada para descer até lá, evitando os escombros da cidadezinha que era ao mesmo tempo Kõln após a guerra e o Passo da Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou chegavam barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday em pé na escada entre paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you’ve changed, baby oh baby, you’ve cbangedso much’ estendeu a mão para socorrer John Lennon mas quando abriu a boca sangrenta, feito um vento preso numa caixa fugiu aquele horrível cheiro de morangos guardados há muito tempo, como um vento vindo do mar, um mar anterior, um mar quase infinito onde nenhuma gota é passado, nenhuma gota é futuro, tudo presente imóvel e em ação contínua, o cheiro de maresia era o mesmo do hálito da pantera biônica de cabelos dourados. Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana junguiana reichiana rankiana rogeriana gestáltica. E mofo de morangos.Gritaria. Mas acordou com o plim-plim eletrônico antes sequer de abrir a boca. O vento fresco da madrugada embalava as cortinas brancas feito velas de um barco encalhado, uma nau com todas as velas pandas, não adianta chorar, Alice, já falei que é loucura, pára de bater essas malditas carreiras, teu nariz vai acabar furando, melhor ser monja budista em Vitória do Espírito Santo ou carmelita descalça em Calcutá ou a mais puta das puras na putaqueapariu, não me olhe assim do fundo do poço, não me encham o saco com esse plim-plim hipnótico, eu fico aqui, meu bem, entre escombros.Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro — que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.
Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima — e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo — e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, sóos sete viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como — não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito — uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no rosto e elevando-as acima da cabeça.O sol estava nascendo.Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.Achava que sim.
Que sim.
Sim.
Caio Fernando Abreu

O OVO E A GALINHA (Clarice Lispector)


De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Ime­dia­ta­men­te percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. — Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. — O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é ca­paz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. — Quan­do eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. — O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. — Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri; ti­ra­ram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. — Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo, o ovo é óbvio.O ovo não existe mais. Como a luz da estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. — Você é perfeito, ovo. Você é branco. — A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.Ao ovo dedico a nação chinesa.O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. — Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é u.m modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. — A Lua é habitada por ovos.O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. — O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. — Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. — Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. — Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele. — Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. — O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. — O ovo nunca lutou. Ele é um dom. — O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. — O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. — O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. — O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. — Ovo por enquanto será sempre revolucionário. — Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode des­truir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “o rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o so­bre­nome. — Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se se disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. — Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não pode é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha car­rega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser uma galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como gali­nha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. — Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. — A galinha vive como em sonho. Não tem senso da realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. — A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. — Ela não sabe se explicar: “sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto”, etc.“Etc., etc., etc.” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de “galinha”. A vida interior da galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue.A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre a tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. E com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.De repente olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu co­ra­ção bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele foi me adormecendo.A galinha que não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenha enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a pa­la­vra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não es­ti­ves­sem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e la­vam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às ve­zes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mão, nós nos reconhece­mos e a isto chamamos de amor. E então não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição con­ce­di­da exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as con­di­ções ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive, uma natureza toda adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas, e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro, tam­bém eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade, mas o fato é que ele estava apenas dificultando a verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele não compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha ver­da­dei­ra função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações da Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo o que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como um justo. Eles me querem ocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atra­pa­lhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só ins­tru­men­to que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa ma­lo­gra­da experiência, procuro raciocinar deste modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo pri­vi­lé­gio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro es­que­ci­men­to. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então livre, delicado, sem mensagem alguma para mim — talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.