A campainha tocou suavemente. Pelo minúsculo olho mágico.
Marcos teve a impressão de ver, no fim do corredor escuro,
uma silhueta clara deslizar escada abaixo. Ele abriu a porta,
admirado. Sobre o capacho, num vaso ridículo, na
extremidade de um caule reto e rígido que parecia realmente
muito fino para sustentá-la, erguia-se uma enorme flor de
hydrangea macrophylla.
Marcos detestava esse gênero de planta, considerada
ornamental, chamada mais popularmente de hortênsia.
Exiladas do seu destino primeiro, que é o de alegrar, com
tenras cores, os velhos muros; separadas de suas irmãs para
serem assim transplantadas num vaso de cerâmica, essas
flores se tornam fictícias e sem atrativo.
Ele não demorou muito tempo para saber quem tinha
acabado de colocar ali, antes de fugir, aquela planta ridícula.
Com toda certeza era Hortência, aquela louca da Hortência,
assinalando dessa forma sua visita. Havia lustros que ela se
obstinava em lhe manifestar sinais de um apego que o deixava
comovido, é claro, mas sem que isso o tocasse no fundo do
seu coração ( ou de algo que denominamos assim). Quem se
diz livre para amar ou não amar, nada sabe sobre o amor.
Marcos não estava livre para fazer tal escolha.
Ele amava alucinadamente, já havia mais de um mês, a
jovem, a graciosa, a doce Yamira. Esse amor correspondido
fazia Hortência mergulhar no mais profundo desespero, sem
que ela pudesse dar fim àqueles sinais bobos de uma paixão
absurda e funesta, por assim dizer, já que ninguém podia
corresponder a essa paixão. Marcos tinha, entretanto, tentado
de todas as formas fazê-la desistir dela. Mas tente então
convencer aquela que ama de que ela não é amada!
O homem fechou a porta apertando entre seus braços a
planta sem odor e de ridícula inflorescência. Não teria sido
melhor que ele jogasse a flor pela janela? Assim a pobre moça
que vigiava, escondida numa reentrância na calçada da frente,
ficaria persuadida para sempre de sua indiferença. Uma vez
mais, uma espécie de piedade o contivera. A menos que a flor,
embora ele não quisesse admitir isso, se iluminando de
repente, naquele momento, tivesse lhe parecido se revestir de
uma cor singular e em nada desprovida de atrativo, enquanto
ela se balançava na ponta do caule, ornado somente por duas
ou três largas folhas de um verde artificial.
De rosa e lilás há pouco, na penumbra do vestíbulo,
sua umbela1 de cem pétalas se coloria agora de um azul
pálido, desse mesmo azul que tinham os grandes olhos de
Hortênsia quando ela os levantava para Marcos, carregados de
todo um passado de promessas contidas.
“Você não acha que ela quis se zombar de você?”
Disse-lhe Yamira morrendo de rir diante da flor tão esquisita
quanto muda. “Como se pode ter tão mau gosto! Yamira foi
ainda mais longe”. Hortência certamente fez isso de
propósito...”.
E, pegando o vaso que Marcos tinha colocado sobre a
mesa da copa, Yamira foi colocá-lo no quarto. “Esta noite, o
presente desta presunçosa será nossa testemunha...” pensava
já com um sorrisinho louco dentro de si mesma.
Quando um pouco mais tarde os dois amantes se
encontraram no fervor ardente de seus desejos coniventes,
não era a hortênsia colocada sobre a mesinha de cabeceira,
diante de sua cama, que Marcos contemplava com olhos
impacientes, mas sim o corpo admirável, na sua terna
juventude desabrochada, que cada noite lhe deixava
maravilhado e entretinha sua vida com uma esperança infinita.
Entretanto, no silêncio ávido das deliciosas carícias que
precediam a realização do ato de amor, Marcos teve a
impressão que uma atmosfera incomum reinava no quarto.
Entre dois abraços, em que seu ardor lhe fazia se
esquecer de tudo, infiltrava-se pouco a pouco a impressão
incômoda de uma presença invisível, uma presença que os
observava. Em seguida essa impressão tornava-se cada vez
mais forte, mais precisa. O homem tinha agora o sentimento
de que numerosos olhares estavam apontados para suas
costas. Esforçando-se para não interromper sequer por um só
segundo o crescimento do prazer de sua namorada que, por
sua vez, não tinha percebido nada, ele se voltou docemente.
Atrás dele, na penumbra, no lugar da hortênsia, girava
lentamente sobre si mesma uma massa fosforescente de um
azul fosco, agitada por tremores. No centro dessa nebulosa, o
corimbo2 multiflorado assemelhava-se a uma bola de olhos
claros que o olhavam tremendo num fascinante furor. Em cada
uma de suas cem pupilas cujo brilho aumentava à medida que
se acentuava sua rotação, Marcos via crescer, como se
quisesse atirar-se contra ele, o horror de uma vertigem
insana.
Mas as pequenas mãos de Yamira percorrendo os
ombros dele, o sopro dela sobre sua nuca e seus beijinhos
rodeando seu rosto o fizeram voltar à sua posição inicial.
Como se quisesse esquecer a visão às suas costas, ele se
agarrou então, com um vigor incomum, na sua jovem amante,
cujos gemidos debaixo dele duplicaram, ao passo que
aumentava neles o êxtase do prazer.
E foi então Yamira que, soerguida por um último
espasmo, abrindo de repente seus imensos olhos negros, pôde
ver, por sua vez, na penumbra, perfazer-se a metamorfose da
flor mágica. No lugar da hortênsia girava uma bola de faíscas
de onde brotavam mil raios de azul incandescente.
Somente no dia seguinte, foram encontrados os corpos
dos amantes unidos um ao outro e despedaçados, dilacerados
por unhadas vermelhas, como se tivessem sido perfurados por
mil agulhas. Sobre a mesinha de cabeceira, diante da cama,
num vaso ridículo, sobre folhas que pendiam, secas e
enrugadas, uma flor de hortênsia ressecada e quase murcha
perdia, uma a uma, suas últimas pétalas, como um buquê de
lágrimas.
1 Umbela: inflorescência em forma de guarda-chuva.
2 Corimbo: tipo de inflorescência simples na qual todas a hastes florais saem de um mesmo plano.
A Hontênsia” foi retirado da revista
Europe/La Nouvelle Française Contemporaine de 1981.
Marcel Béalu nasceu em 30/10/1908 na França e
começou a escrever sob a influência de Max Jacob, um dos
representantes do Simbolismo e do Surrealismo francês.